Analise Crítica do Excerto do Livro “Whigs and Hunters: The Origin of Black Act” com Vista a Criação de uma Nova Cultura Jurídica em São Tomé e Príncipe

Excerto na língua original (língua inglesa)

“The rule of law itself, the imposing of effective inhibitions upon power and the defence of the citizen from power’s all inclusive claims, seems to me to be an unqualified human good… And if the actuality of the law’s operation in class-devided societies has, again and again, fallen short of its own rhetoric of equity, yet the notion of the rule of law is an unqualified good”.

Whings and Hunters: The origin of Black Act, 1975, pp. 266-267.

 

A nossa tradução para português

“O Estado de Direito por si só, a imposição de inibição efetiva sobre o poder e a defesa do cidadão de todas as revindicações do poder, parece para mim um bem humano não qualificado.. e se a atualidade da operação do direito na sociedade dividida em classe tem, novamente e novamente, ficou aquém da sua retórica de equidade, ainda assim a noção de Estado de Direito é um bem não qualificado”.

O texto acima descrito fez correr rios de tinta na doutrina jurídica inglesa sobre a ideia de o Estado de Direito ser um bem não qualificado, em que cada autor procurou apresentar as suas perspectivas nos seus artigos e livros sobre a posição adotada pelo historiador Edward Palmer Thompson ao defender que o Estado de Direito é um bem não qualificado.

É fundamental contextualizar o leitor sobre o momento histórico em que o livro se centra, o Século XVII, período de transição do feudalismo para o capitalismo em Inglaterra. Black Act 1723 é uma lei introduzida no parlamento britânico em 1722, criminalizava-se a “vandalização de terras” dos membros do parlamento britânicos ou dos detentores de capitais. As terras que pertenciam aos agricultores e a determinadas famílias desfavorecidas passaram a ser propriedade dos membros do parlamento e dos detentores de capitais.

Farei uma análise critíca do excerto do livro do historiador Edward Palmer Thompson com o intuito de ajudar a criar uma nova cultura jurídica em São Tomé e Príncipe. Pode-se retirar dessa experiência do sistema jurídico inglês, princípios jurídicos que podem servir de base a analise e a criação de leis em São Tomé e Príncipe, por conseguinte na interpretação e aplicação do direito.

FUNDAMENTOS SUBJACENTES AO CONCEITO DE ESTADO DE DIREITO

  1. O GRANDE DEBATE: UM DIREITO NATURAL OU UM DIREITO POSITIVO?

O direito quase sempre é marcado por duas perspectivas diferentes: uma naturalista e a outra positivista. Filósofos como Platão, Aristóteles e os seus respectivos seguidores têm uma visão naturalista do direito. Defendem que o direito natural está inerente a natureza das coisas. Portanto, o direito natural estaria, assim, também inerente a natureza humana. Nesse sentido, o referido direito teria duas fontes: a razão e a moral. Para os supra mencionados filósofos, esse direito natural deveria estar acima de qualquer regra, e que qualquer regra que fosse contrária a aquele direito natural não deveria ser visto como regra.

A Grécia antiga estava dividida entre cidades estados (poleis) e cada cidade-estado tinha os seus próprios costumes e convenções e normas informais de convivência social, marcado por um contexto onde os tribunais eram lugares dos litigantes, na sua maioria homens leigos (pessoas sem conhecimento). Os leigos poderiam ir aos tribunais e apresentarem os seus casos em forma de persuasão moral; a investigação dos crimes, dependiam maioritariamente da iniciativa particular, ou seja, dependia da iniciativa da vítima do crime. O direito natural existia independemente da criação de qualquer regra e era baseado na racionalidade humana.

Por outro lado, temos a abordagem positivista do direito. Com a evolução das ciências naturais e a criação de métodos mais objectivos para descrição dos fenómenos sociais, a antiga perspectiva naturalista do direito foi deixada de lado. Surgiram novas vozes, que defendiam um direito mais próximo das ciências naturais. John Austin, Herbert Lionel Hart e Hans Kelsen e os seus seguidores defenderam a existência de um direito livre de valores, por outras palavras, defendiam a separação entre o direito e a moral. Para Hans Kelsen o direito é um sistema fechado e tem uma hierarquia de normas escritas. O trabalho dos juristas, para o Hans Kelsen, era o de descrever essas regras e o papel dos juízes era somente aplicá-las, sem qualquer influência de outras ciências ou valores.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial humanizou-se essa visão positivista do direito. Porquê? Porque quando a Alemanha estava sobre o domínio do regime Nazi, tudo quanto fora feito pelo regime Nazi foi em conformidade com o direito existente na altura na Alemanha. Mas pode dizer-se que tudo quanto fora feito foi justo? Esse questionamento vem abrir uma nova porta de dialógo entre os defensores de uma perspectiva naturalista do direito e os defensores de uma perspectiva positivista do direito. 

É nesse cenário que surgiram vozes como a de Ronald Dworkin, que defende que os princípios são genéricos e são usados como guia ou elementos de orientação na aplicação das regras. Diferentemente dos princípios, a regra busca regular aspectos específicos do comportamento humano na sociedade.

  1. O DEBATE: UM DIREITO JUSTO OU UM DIREITO INJUSTO?

O justo e o injusto deveria e/ou deve ser relativo quando se trata do direito? Para Aristóteles, a Justiça possui um duplo sentido: o sentido de uma justiça distributiva e o outro o sentido de uma justiça correctiva. Para o autor, a justiça distributiva é dividir os bens da sociedade de acordo com o mérito de cada indivíduo na sociedade; e justiça correctiva surgiu para corrigir os erros que possam surgir após a distribuição dos recursos da sociedade e, também, para repor ou corrigir comportamentos humanos que violem os direitos dos outros indivíduos na sociedade. Portanto, a justiça correctiva vem evitar situações de injustiça na sociedade.

Jeremy Bentham tem uma perspectiva diferente do Aristóteles sobre justiça. Para Jeremy Bentham pode se atingir a justiça social através da maximização da felicidade. Como? Aumentando o prazer e reduzindo a dor da maioria das pessoas. Na prática, a felicidade da minoria é sacrificada em benefício da maioria.

Já John Stuart Mill tentou humanizar a perspectiva de John Bentham em relação a justiça. Para John Stuart Mill a única forma da classe no poder usar o seu poder de forma justa sobre a comunidade e contra a vontade da comunidade é evitando causar danos a comunidade.

Outra perspectiva sobre a justiça diferente da dos autores mencionados acima é a perspectiva de John Rawls. Para ele, se queremos definir procedimentos justos aos olhos de todos os membros da comunidade, devemos construir a sociedade colocando um véu da ignorância nos olhos e não nos sendo capaz de ver nada nem ninguém. Não saberíamos quem somos nem o que fazemos na sociedade, nem tão pouco a nossa função. Podemos estar em qualquer posição e em qualquer momento na sociedade, por isso, diz-nos, John Rawls devemos criar, interpretar e aplicar as leis com os olhos vedados com o véu da ignorância para que haja justiça social.

  1. O DEBATE: A EFICÁCIA OU A INEFICÁCIA DO DIREITO?

O direito não pode ser vago e sem clareza. As leis devem ter uma função educativa ou ideológica, por esse motivo devem contribuir para a configuração dos ideais de uma nação. É através do direito que se conhece os comportamentos aceites e os comportamentos não aceites pela sociedade, é através das leis que saberemos como salvaguardar os nossos direitos, proteger os nossos bens, e exercer os nossos direitos e também conhecer as nossas obrigações.

É através da leitura e do entendimento das decisões dos tribunais que deveríamos obter essas informações. Portanto, é no exercício da sua função jurisdicional que somos educados pelos tribunais sobre as regras que regulam as relações sociais. Assim, é na lei aprovada pelo parlamento, promulgada pelo presidente e interpretada pelos tribunais que deve nos dar a certeza e a segurança jurídica.

 A Lei Negra (“Black Act de 1723) e outras legislações foram usadas para transferir os direitos de propriedade daqueles que o detinham, os mais vulneráveis ou os desprovidos de poder para os mais poderosos. Essas leis reflectiam a conversão e representavam a culminação de luta económica e social em que o tradicional sistema económico foi destruído e substituído por um novo sistema económico baseado no direito capitalista sobre as propriedades.

Aqueles que viram os seus direitos sendo retirados, em algumas circunstâncias poderiam ter algumas compensações, mas na maioria dos casos foram convertidos em crimes e alguns que reivindicavam foram punidos com a pena de morte. Quando protestavam em defesa dos seus direitos sobre as suas terras, foram vistos como criminosos e que estavam a interferir no exercício de direito de propriedade dos outros indivíduos.

Não podemos julgar a lei como sendo injusta em todas as situações, no entanto,  Edward Palmer Thompson disse que a Black Act (Lei Negra) foi “bad law, drawn by bad legislators, and enlarged by interpretation of bad judge” (a nossa tradução, “a Lei Negra foi uma má lei, escrita por maus legisladores e abrangida pela interpretação de maus juízes”).

Para Edward Palmer Thompson, o estado de direito existe em um Estado quando a limitação do poder discricionário do governo, pode ser feita através de estabelecimento de processos legais e criação de um poder judicial independente.

  1. A JUSTIÇA E OS SEUS DESAFIOS

Antes de 1994, a África do Sul estava sob o regime apartheid. O poder legislativo aprovou leis que agravavam a disparidade racial / social na África do Sul. Após, 1994 a África do Sul transitou para um regime democrático.

Em 1993, o jovem Stephen Lawrence foi esfaqueado e morto no Reino Unido por motivações raciais e os autores do crime não foram punidos.

Em 2005, o jovem Jean Charles de Menezes foi morto pela polícia metropolitana inglesa numa operação terrorista quando saia da sua casa para o seu local de trabalho, foi seguido e morto pela polícia e veio a verificar-se que ele era inocente e que não estava a preparar nem estava envolvido em nenhuma operação terrorista.

Shumima Begum, uma cidadã britânica que saiu de Inglaterra e viajou para Síria quando tinha 15 anos de idade para se juntar ao seu marido que pertencia ao grupo terrorista (ISIS), queria regressar ao Reino Unido ao completar 18 anos, mas foi impedida de regressar apesar de ser cidadã britânica.

Apesar das suas falhas (que devem ser corrigidas) ainda podemos considerar estar em presença de Estado de Direito pese as circunstancias. É hoje quase que mundialmente reconhecido o acesso universal aos tribunais, às pessoas que não têm condições económico-financeiras concede-se-lhes o direito ao patrocínio jurídico, mais, foram criadas leis que permitem a igualdade entre as pessoas, a equidade de género, a proibição de não discriminação, leis que promovem e garantem exercício de um enorme catálogo de direitos, dentre muitas outras situações, direitos e garantias, que gozam de efectiva protecção jurídica, isto tudo em vários países, para não dizer na maioria dos países.

CONCLUSÃO  

A justiça bem como a equidade e a democracia são ideais que todas as sociedades almejam atingir. Em diferentes momentos históricos, o direito tem se apresentado como injusto, mas o direito vai se corrigindo a si mesmo com o tempo, por auto-reflexão, doutrina, por rectificação própria, jurisprudência, mas também através de impulsos que lhe são externos. Apesar das falhas, o sistema jurídico ainda é o melhor meio de resolver os conflitos e que permite uma harmoniosa convivência social.

Bibliografia

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Artigos

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