O País, a Nação e um Modelo de Convivência

O caso de São Tomé e Príncipe exige trabalho hercúleo (e inclusivo), apesar de a conclusão ser simples: não haverá futuro se não formos capazes de articular o reforço das instituições da República para servir um modelo de convivência renovado, e isso só será possível se soubermos usar a nossa soberania estrategicamente.

 

Não desistimos de existir enquanto think tank santomense, não abdicaremos de propor debate e reflexão sobre o nosso País, nem abrandaremos o ímpeto e o propósito de contribuir para o progresso de São Tomé e Príncipe, cumprindo a nossa Visão, dentro do que nos é possível, e articulando com os Valores que definem o que queremos ser e como queremos fazer.     

Não somos insensíveis, chocou-nos a tragédia do dia 25 de Novembro (2 5/ 11), chocou-nos tanto, como chocou todos São-tomenses e todos não São-tomenses que acompanham os assuntos do País.

Sabíamos, exactamente como sabiam muitos atentos à política nacional, que o risco de erupção de violência extrema era elevado, por uma série de sinais que vinham sendo dados em sucessivos momentos, sobretudo, em períodos (pré e pós) eleitorais.

Momentos que vinham expressando, mais do que meros sinais, sintomas claros de decadência do discurso político, sintomas expressivos de ausência de apresentação de propostas e soluções sérias e criativas para os problemas profundos do País por parte da classe política. Momentos que vinham expondo sintomas de disfuncionalidade de comportamentos, levando ao extremo de essa disfunção, originalmente política, se projectar nas relações sociais e na socialização entre São-tomenses.

Momentos que desnudam sintomas de falência na capacidade de entender a política como um de muitos instrumentos colocados ao serviço do colectivo para a satisfação e bem-estar de uma nação e para o esforço necessário à construção de um país. Sintomas que sentimos, vimos, cheiramos, ouvimos e tacteamos, todos, sem que todos tenhamos estado, deliberadamente, envolvidos e sejamos, igualmente, responsáveis por eles, mas reagimos e agimos, todos, com a leveza condescendente, com o equilibrismo cheio de fezada ou com a cumplicidade selectiva e silenciosa, contribuindo, assim, todos, inexoravelmente, para que os sintomas descambassem na tragédia.

Não, a tragédia de 25 / 11 não foi um acaso, não foi um episódio ocasional, não nos enganemos, foi resultado de uma evolução, de um contexto histórico e de uma desestruturação genética, paulatina e deliberada de um País, o nosso.

Agora, no pós- 25 / 11, sem hesitações nem calculismos, cabe a todos, descomplexadamente, assumir o compromisso de apanhar os cacos e de trabalhar para refazer o que se partiu, tirando das costas o peso da mochila que carrega, dentro, todo um passado pouco virtuoso, pouco são, marcado pelo voluntarismo individualista, pela hubris, pela arbitrariedade, pela obscuridade e pelo obscurantismo. Refazer só será possível se juntarmo-nos todos, se juntarmo-nos muitos, que ambicionamos, no futuro ter um País dos São-tomenses, para todos, um País que hoje, não haja ilusões, não existe, existindo simples fragmentos de uma Nação, simples fagulhas de simulacro de um estado soberano. 

No entanto, ninguém no seu perfeito juízo pode presumir que o pós-25 / 11 possa ser concebido sem que de forma séria e virtuosa se esclareçam judicial e politicamente, em níveis distintos, os factos que levaram à tragédia e os factos que envolveram a tragédia em si, por muito que custe, por muito que choquem, nada custará ou chocará mais do que as imagens que já vimos, do que as imagens que o mundo viu, do que o trauma causado aos São-tomenses.

Desta vez, ao contrário do que aconteceu sistematicamente no passado, não deve valer o silêncio dos arranjos que rasuram monstruosidades, nem os arranjos protectores de interesses que se perpetuam coniventemente, porque ambos têm sido óbices à possibilidade de viabilizar a construção, ontem, e a reconstrução, hoje, de São Tomé e Príncipe. Terá de haver responsabilização política e jurídica para que haja esperança e futuro.

Pessoalmente, de agora em diante, tendo como referência a tragédia de 25 / 11 e suas consequências, mais do que nunca, terá de haver disponibilidade da Cidadania, primordialmente, por manifesta incapacidade e incompetência dos políticos, para debater e reflectir aberta e dinamicamente 3 aspectos que considero fundamentais para refazer-se a ideia de País e reconstruir-se o sonho de uma Nação: aprofundar o modelo de convivência, robustecer a estrutura institucional, reforçando as instituições do estado e repensar a fórmula de soberania nacional.

Em primeiro lugar, há que recordar que no inicio dos anos 90 do século passado, os São-tomenses escolheram, por referendo, uma nova Constituição que pretendia, formalmente, ser um espelho em que o País se visse civilizacional, jurídica e politicamente, um normativo que propunha bases mínimas de um modelo de convivência assente numa democracia e num estado de direito.

A verdade é que, analisando à distância, pode constatar-se que aquela Constituição é mais de organização política, mais vocacionada para o enquadramento de direitos políticos (e alguns civilizacionais), mais virada para promoção de uma democracia de partidos e menos um normativo de promoção da participação (política e não só) da Cidadania em órgãos de decisão e/ou de consulta como, por exemplo, o Conselho de Estado, órgão de consulta por excelência, com presença da Cidadania e com relevância política, que aparece na revisão constitucional de 2003.

Ainda assim, apesar do pequeno passo que significou a criação do Conselho de Estado, a Constituição em vigor, que cumpre 20 anos!, está longe de promover institucional e formalmente a intervenção da Cidadania, de forma decisiva, nos assuntos do estado, dando-lhe oportunidade de aconselhar e envolver-se nas estratégias pro-desenvolvimentistas, de participar na elaboração de decisões, de responsabilizar-se por elas, de fiscalizá-las e de intervir, num outro nível, em processos de reencontro, de reconciliação e de aproximação do Cidadão com a Cidadania, da Cidadania com a Nação e da Nação com o País, em momentos de ruptura, e de, consequentemente, estabelecer um quadro que aprofunde o modelo de convivência, tornando-o confortável para todos São-tomenses.

Não posso deixar de questionar-me como seria a gestão da crise pós – tragédia 25 / 11 se a Constituição previsse uma segunda câmara, um Senado, desenhado para ser relativamente independente dos poderes partidários, cuja composição reflectisse diversidade geracional, profissional, tradicional, territorial, intelectual e cultural do País e cujas competências se inspirassem e ampliassem as actuais competências do Conselho de Estado, mas com plena autonomia orgânica e funcional para ter iniciativas em defesa do interesse nacional e em gestão de crises políticas e / ou institucionais?

Em segundo, reforçar e robustecer as instituições do estado, mais do que uma necessidade, é uma urgência nacional, um devir patriótico, considerando o que ficou evidente com as ocorrências de 25 / 11. Foi posto (e continua a ser posto), cruelmente, a nu, a fraqueza das instituições oficiais São-tomenses. Naquele dia, assistiu-se a um lento e triste striptease de despropósitos institucionais, desde a irracionalidade de ignorar-se princípios básicos de gestão de crises, passando pela subversão de hierarquias e cadeias de comando, até as desastrosas opções de comunicação dos acontecimentos, com isso e muito mais, expôs-se a fragilidade do próprio País enquanto Estado, ao ponto de temer-se por uma implosão generalizada de violência, o que destruiria irreversivelmente São Tomé e Príncipe.

O que sempre se percepcionou como um dos principais óbices ao desenvolvimento, a fraqueza e a debilidade das instituições do Estado, por razões sobejamente conhecidas, nomeadamente, pela excessiva partidarização, pela ausência de cultura organizacional, pela baixíssima performance funcional, por práticas retrógradas de gestão e comunicação, pela tribalização extrema dos funcionários e dos servidores públicos, por deliberado incumprimento de normas e de procedimentos, por estar em falta legislação sobre transparência e probidade, por inexistência de protocolos estatais de gestão e comunicação de crises (e não só) e por banalizada inobservância de simples princípios éticos, tudo isto ganhou outra dimensão, exponenciou-se aos nossos olhos, o que nos obriga a pensar o que e como devemos fazer, já, para que não se repitam tragédias de igual dimensão no futuro.

Durante muito tempo, quisemos acreditar que a debilidade e a fragilidade das instituições do estado eram meros reflexos de problemas conjunturais ou problemas sectoriais. Dizia-se que administração pública não funciona, que a justiça não existe, que o hospital é uma vergonha etc., só não nos passou pela cabeça ter a honestidade de assumir que no País quase nada funciona dentro de razoável normalidade, portanto, que as causas são mais gerais e mais profundas, e pior, que a consequência deste estado de coisas reflecte-se na absoluta descrença e desconfiança dos cidadãos nas instituições da República.  

Finalmente, chegados aqui, não é possível furtar-se a questão fundamental: o que fazer para aprofundar o modelo de convivência e reforçar as instituições do estado São-tomense? Talvez faça sentido recorrer a história recente para mais facilmente entender como tentar solucionar estruturalmente as sucessivas crises políticas e os reiterados impasses e obstáculos ao desenvolvimento do País, colocando no cerne do debate sobre o futuro, sobre que entendimento e que conceito de soberania se pretende para São Tomé e Príncipe, um pequeno estado insular em desenvolvimento, (in)dependente, pobre e ultraperiférico.  

Os São-tomenses da minha geração guardam na memória a imagem do Presidente Obasanjo e do Presidente Fradique de Menezes a saírem de um avião no aeroporto de São Tomé, há 20 anos atrás, aquando do golpe de estado de 2003. Não é necessário andar mais para trás para encontrar outros momentos que melhor ilustrem, por um lado, a nossa incapacidade de entre nós, autonomamente, resolvermos os nossos conflitos e, por outro lado, a facilidade com que os detentores de nossos órgãos de soberania cedem leviana, parcial e circunstancialmente soberania ou competências de soberania para consolidação de um certo, seu, status quo.

Nas últimas décadas, em resultado de enraizada conflitualidade e instabilidade política, o País tem vivido de intervenções internacionais verticais – aquelas que ocorrem, exclusivamente, para solucionar crises ou emergências -, ora recorrendo aos “bons ofícios de países amigos”, como foi o caso do Presidente Obasanjo em 2003, ora apelando à “boa vontade da comunidade internacional”, como tem acontecido ultimamente. De facto, essas intervenções tendem, dentro da sua lógica instantânea, a ser efectivas, resolvem crises e remedeiam emergências, contudo, não são sensíveis à especificidades e à idiossincrasias locais, não apresentam soluções para problemas estruturais, que estão por detrás das crises e por cima dos impactos das emergências, pelo contrário, por norma, agravam-nos, porque as questões que colocam, em negociações ou avaliações, entendem-se como sendo obstáculos a resolução imediata.      

No último meio século, ou melhor, nos últimos 2 séculos, para dimensionar melhor a análise, São Tomé e Príncipe, para existir ou subsistir enquanto comunidade e sociedade, nação ou país, nunca deixou de ser alvo de intervenções horizontais – as que resultam de acordos ou parcerias com outros países ou entidades terceiras, que prolongam-se no tempo, visando ter um efeito amplo, geral ou sectorial -, que no pós-Independência passaram a ser entendidas como cooperação, em forma bilateral ou multilateral.

(Realmente, qualquer intervenção internacional, seja vertical ou horizontal, implica cedência de poderes e de competências de soberania, quanto mais intervencionado, menos soberano é um país. Sobretudo, quando as intervenções passam a ser, em si, o modelo de governação, um modelo normalizado que padroniza uma situação de permanente dependência).  

Acontece que enquanto país independente, beneficiamos de inúmeros programas e projectos, de incontáveis fundos e financiamentos no âmbito de intervenções horizontais, não foi por falta de cooperação externa que o País deixou de estruturar-se e desenvolver-se, foi, efectivamente, por não ter conseguido compreender que o caminho para consolidar a soberania requeria criação de competências para assegurar eficiência económica e exigia capacidade proactiva e sábia para investir no modelo de convivência, na boa governação e na optimização da gestão das ajudas internacionais colocadas ao seu dispor.

Como qualquer outro Pequeno Estado Insular em Desenvolvimento (SIDS / PEIeD), o País tem vulnerabilidades excepcionais que resultam da sua dimensão territorial, do seu isolamento geográfico, da escassez de recursos, da sua história etc., o que limita a sua autonomia estratégica, económica, securitária e diplomática, o que, por sua, como consequência, impossibilita fazer face autonomamente aos típicos desafios de qualquer PEIeD hoje: pirataria marítima, criminalidade organizada transnacional, corrupção, problemas de desenvolvimento socioeconómico, alteração climática e problemas ambientais. Parte relevante das soluções para estes desafios transcende decisões internas dos estados, transcende a soberania dos países.

Considerando somente o desafio segurança, indispensável para qualquer sociedade, individuo ou organização, entendida contemporaneamente como percepção de protecção contra ameaças e riscos de qualquer tipo, tendo o estado como principal actor e a soberania como referência central. Se pensarmos em todas as dimensões do conceito segurança desde a militar, a social, a política, a económica até a ambiental, facilmente compreendemos o alto custo de investimento no sector, custo impossível de ser, alguma vez, totalmente, assumível.

Se acrescermos o custo de garantir segurança a um território marítimo que é 160 vezes maior do que as Ilhas, território marítimo que alberga os principais recursos naturais do País, mar que é o grande prospecto geopolítico e que pode, se devidamente potenciado, constituir o melhor activo geoestratégico no futuro, uma espécie de atenuador de custos ou valor para trade-offs.

Em suma, o caso de São Tomé e Príncipe exige trabalho hercúleo (e inclusivo), apesar de a conclusão ser simples: não haverá futuro se não formos capazes de articular o reforço das instituições da República para servir um modelo de convivência renovado, e isso só será possível se soubermos usar a nossa soberania estrategicamente.

Entretanto, outros estados arquipelágicos africanos vão fazendo o seu caminho no sentido de reforçarem as suas instituições e na perspectiva de aprofundarem os seus modelos de convivência, de modo a trabalharem com sustentação o seu modelo de desenvolvimento, de forma a estarem mais aptos e resilientes a mudanças e a incertezas da ordem internacional.

Por exemplo, Maurícias estruturou o seu sistema jurídico colocando no topo um tribunal de recurso estrangeiro;  Seicheles abriu o seu sistema jurídico a contratação de juízes internacionais e permite-se usar tribunais de recursos ad-hoc;  Cabo Verde reage, reflectindo e debatendo, para agir e ser capaz de fazer face ao difícil e imprevisível contexto geopolítico internacional, abrindo cenários que possam servir melhor os seus interesses. Não há acasos, não há claudicação, não há recolonização, há conceptualizações dinâmicas de competências de soberania, há pensamento estratégico, há, por tudo isso, uma ideia de admissibilidade instrumental de partilha de soberania.

Assim, fica sumariamente ilustrado quão paradoxal é o “viva!” enérgico, dado, irreflectida, ilusória e emocionalmente, por um amplo sector social das elites São-tomenses ao “total soberanismo”. “Viva!” que é menos enérgico do que o dado ao nacionalismo constitucional, “viva” que é ainda menos enérgico do que o dado ao patriotismo inclusivo e progressista, ambos pilares indispensáveis a construção de uma nação que se pretende moderna!

A ideia actual de País, a que vigora e é hegemónica, pertence por inteiro, ao sector das elites que recusa (recusou sempre) debater pragmaticamente sobre os limites da ideia da soberania total ou plena e que recusa (recusará sempre) reflectir seriamente sobre as vantagens ponderadas do conceito de soberania estratégica que, necessariamente, implica partilha de soberania de forma estudada, estruturada, apropriada e controlada… por nós, entre nós, soberanamente e sem ortodoxias.