A Transparência e a Responsibilização de Pessoas e Instituições em África

Para abordar o tema que me foi proposto – A Transparência e a Responsabilização de Pessoas e Instituições – poderia desde logo começar a apresentar números, indicadores e “ratings” de organizações internacionais sobre corrupção e fragilidade das instituições em África. De seguida, apresentar-vos-ia os princípios orientadores em voga sobre a construção ou reconstrução do Estado de Direito nos países subsaharianos, particularmente no que respeita à implantação da Democracia e da Economia de Mercado, focando em especial, como é agora comum no discurso do “main stream”, as “boas práticas” requeridas pelos critérios da “boa governança”. Finalmente, proporia programas de “capacity building” e “institution building” destinados a um conjunto bem identificado de sectores e públicos-alvo, onde certamente não faltaria o da justiça.

Mas não vou fazer nada disto, porque, para tratar deste problema do desenvolvimento africano, parto do pressuposto de que a questão da corrupção e da  fragilidade das instituições modernas em África, de que decorre a correlativa transparência e responsabilização de pessoas e instituições, não é, nas presentes circunstâncias, um problema de natureza política, mas sim de natureza cultural, inserido num processo histórico que não pode ser ignorado. O problema é do domínio do “tempo demorado” das mudanças sociais e culturais, e não do domínio do “tempo acelerado” dos factos políticos e económicos.

Isabel Santos

Isto não significa que não se tentem pôr em marcha políticas que visem a transparência e a responsabilização de pessoas e instituições, mas é sensato temperar as expectativas ao gosto do ritmo e do ambiente africano, que é marcadamente diferente do europeu e ocidental onde essas mesmas políticas são pensadas. Isto não significa também que defenda qualquer tipo de via específica que entronque nas raízes africanas. Com efeito, é uma ilusão tomar como certo que a África contemporânea, moderna, deriva de uma matriz exclusivamente endógena onde essa mesma África se poderá ou deverá reencontrar para caminhar com sucesso na via do desenvolvimento. De facto, a África moderna é o produto ainda em formação do cruzamento da Herança Africana com o Legado Colonial, ou seja, da Cultura Africana com a Cultura Europeia, originando portanto uma situação de ambivalência cultural que suporta a estruturação do Estado e da Nação. Na verdade, a realidade social africana é triplamente complexa, porquanto é ainda hoje dinamizada pela integração tendencialmente sincrónica de estruturas sociais pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais, num sentido quer vertical quer horizontal. Isto é observável no âmbito do Estado, para apresentar um exemplo relevante, em particular no que toca ao problemático relacionamento entre as autoridades tradicionais e o poder político moderno.No campo dos estudos africanos verifica-se historicamente a tendência de os especialistas e demais interessados olharem para África segundo dois prismas que podemos designar de afro-pessimistas e afro-optimistas. Não é aqui e agora o lugar para discutirmos estas posições, em regra política ou ideológicamente comprometidas, mas tal facto deve ser assinalado para se compreeender como o problema do desenvolvimento africano se encontra “dicotomizado”, dificultando as abordagens realistas assentes em análises objectivas e científicas. Por outras palavras, sobrecarregando infelizmente o vocabulário africanista com mais um “ismo”, existe um défice de afro-realismo no estudo dos problemas africanos que deriva inegávelmente do capital histórico de queixas anticolonialistas e de toda a emotividade que lhe está associada.

Este ambiente, que no entanto se tornou mais flexível desde o final da Guerra Fria, sobretudo no que respeita à culpabilização imediata da “herança colonialista” em relação a todos os males africanos, impede ainda hoje que, sem sobressaltos e acusações de neocolonialismo e racismo, se aborde a História Contemporânea da África na perspectiva da ambivalência cultural. E na verdade, quando olhamos por esta perspectiva, compreendemos a curta duração do processo da mudança em África no sentido da modernidade, o enorme salto cultural, sem correspondência na História da Humanidade, e compreendemos todos os problemas de estruturação e reestruturação social que lhe estão associados. Visto isto, percebemos que, de facto, para impedir o recorrente fracasso das políticas de desenvolvimento africano desde as independências, temos de contrapôr o princípio do “dar tempo ao tempo” – tão estruturalmente africano quanto português – ao princípio do “tempo é dinheiro”, que neste caso africano tem sido pelas razões invocadas mais um factor de perda do que de ganho. Uma observação segura é a de que a lógica dos calendários dos projectos de desenvolvimento não coincide frequentemente com a lógica dos calendários locais.

Por esta perspectiva não se pretende evidentemente defender a dengosa atitude da inacção ou da contemporização com a passividade, mas antes sublinhar que na concepção, planeamento e execução das acções se deve tomar em devida conta os reais condicionalismos sócio-culturais do desenvolvimento africano, quer ao nível global quer sectorial. Estes não são em si mesmos negativos, mas a verdade, devemos enfatizar, é que estabelecem um conjunto de condições que são parte integrante do desenvolvimento e contra as quais este não pode realizar-se. Para além do mais, qualquer abordagem ou intervenção no âmbito do desenvolvimento africano não pode ignorar que a maioria da população vive nas zonas rurais e enquadrada pela cultura tradicional.

A título de exemplo podemos assim observar de modo global, para além de que a noção africana de tempo é diferente da ocidental, os seguintes condicionalismos sócio-culturais gerais do desenvolvimento africano:

  • Um é que as noções africanas de poupança e de investimento, de contrato, de tomada de decisão 9e de trabalho decorrem de atitudes características do comportamento tradicional, como a propensão para o gasto, a inibição de empreendorismo e a desvalorização do compromisso “frio” de um moderno empréstimo bancário, e também dos processos lentos de consenso que é imprescindível atingir, e ainda do gosto pelo lazer e pelos gastos que reforçam os laços sociais.
  • Outro é que a pluralidade dos Direitos tradicionais “intrometem-se” na expansão e aplicação do Direito moderno. Isto é particularmente evidente no caso da poligamia ou dos sistemas de parentesco matrilineares, onde o direito de sucessão se transmite de tio para sobrinho. Devido à complexidade da situação, e à sobreposição de casamentos civis, religiosos e tradicionais, e como as separações e divórcios são frequentes nas áreas urbanas e suburbanas, muitas mulheres “destribalizadas” ficam assim impossibilitadas de acederem a pensões de custódia e alimentos, e muitas crianças são obrigadas a viver na rua e da rua. Outro aspecto muito importante diz respeito ao problema da posse da terra, que na concepção jurídica tradicional corresponde ao mero direito de usufruto, legado pelos antepassados, a quem é atribuída a propriedade efectiva das terras das famílias, em regra com fronteiras mais ou menos flexíveis, isto é, imprecisamente delimitadas. Como é óbvio, esta situação é problemática para o Estado e para a economia de mercado. 
  •  Outro é que a rede da Administração Pública é insuficiente em relação ao padrão de distribuição da maioria da população pelo território, que regra geral vive em aldeias relativamente pequenas e dispersas.  Uma consequência relevante é a dificuldade de adaptar o planeamento do desenvolvimento a esta situação,  por exemplo no que respeita à redes escolares, sanitárias ou energéticas. Outra é a tendência para a falta de registo civil, como as certidões de nascimento e de óbito, as quais por sua vez são imprescindíveis ao recenseamento da população e em parte, consequentemente, aos processos eleitorais, abrindo desta forma espaço para irregularidades na composição dos cadernos eleitorais.
  • Outro ainda é que o papel das elites ou chefes tradicionais, agora frequentemente designados como autoridades tradicionais, é determinante nas zonas rurais. Aliás, como foram duramente perseguidos e, muitos, mortos durante longos anos após as independências pelos poderes marxistas-lenistas, sob a então terrível acusação de tribalistas e divisionistas, aproveitaram a abertura da Democracia, e o rasto que ficou de destruição e miséria daqueles tempos, para restaurarem certas crenças que no tempo colonial já estavam em desuso ou de algum modo atenuadas. É neste contexto que se compreende o ressurgimento vigoroso de práticas de feitiçaria, como tem sido observado a partir de vários quadrantes, em especial pela igreja católica. Com efeito, a feitiçaria é apenas um aspecto infelizmente mais mediático desta situação de resistência cultural. De um modo geral, as elites tradicionais não deixaram de reforçar a sua posição de “filtros” relativamente ao processo de modernização e aos projectos de desenvolvimento, interpretando as mensagens para as populações sob a sua alçada. Na verdade, do ponto de vista das elites tradicionais, o mundo dos brancos (entenda-se brancos propriamente ditos e negros e mestiços da elite moderna) continua a ser confuso e dificilmente compatível com o seu mundo. A desconfiança relativamente às autoridades modernas é muito elevada, e em concreto em relação aos políticos e respectivos discursos, nos quais se incluem os do desenvolvimento. Por exemplo, no norte de Moçambique, na área da etnia Makwa, que é a de maior expressão demográfica no país, os excessos modernistas revolucionários do governo da FRELIMO levaram  a que a palavra “política” passasse a ter localmente o duplo sentido de “astúcia e mentira”.
Adelino Pereira

Mas uma dimensão absolutamente fundamental desta realidade é a do controlo das tendências de voto por parte das elites tradicionais nas eleições autárquicas, legislativas e presidenciais. A questão é muito simples. A maior parte da população pura e simplesmente não acredita no princípio básico do sufrágio que é o sustentáculo da Democracia. Esse princípio é o do voto secreto. As campanhas de educação cívica e eleitoral não conseguem por enquanto contrariar a ideia de que os curandeiros e feiticeiros tudo conseguem ver e revelar. O medo das pessoas é o de que se votarem numa linha diferente da indicada pela cadeia hierárquica tradicional – chamemos-lhe assim – possam atraír algum malefício para a família e serem detectados e responsabilizados pelo sucedido. É aqui que entram em campo, principalmente durante os processos eleitorais, os chamados intermediários etno-regionais que fazem a ponte entre o poder moderno e o poder tradicional e que são vitais para o sucesso das vitórias eleitorais.

Por outro lado, podemos falar de outros condicionalismos sócio-culturais específicos da africanização geral do Estado moderno que está em curso e que marcam o que podemos designar de democracia reservada, em que a oposição política praticamente não tem espaço de manobra que não seja o das cadeiras nos parlamentos. Note-se sobretudo nas características da aritmética étnica, do poder militar, do presidencialismo  e da concepção patrimonial do poder em África.

No caso da aritmética étnica, estamos perante uma realidade que muitas vezes não é abordada de forma confortável pelas elites africanas, preferindo-se o silêncio sobre o assunto, o querevela a importância no que respeita à manutenção do Poder e ao acesso aos recursos predominantemente controlados por via do Estado. O desconforto deve-se fundamentalmente à possibilidade de o tratamento do tema “resvalar” para o ressurgimento de velhos ou novos conflitos não sanados e porventura para a discussão da proporcionalidade da representação étnica no Poder. Esta é a explicação, nomeadamente no caso lusófono, para o facto de após as independências, e até há poucos anos, qualquer manifestação de etnicidade, mesmo que meramente cultural e não política, fosse imediata e directamente perseguida e reprimida sob as designações de regionalismo, tribalismo ou divisionismo.

Neste contexto, a introdução recente da Democracia em África levanta a interrogação de se saber se a liberdade de expressão, que possibilita a ocorrência de debates sobre a etnicidade e mesmo de discursos políticos de natureza étnica, se constitui enquanto factor de coesão ou de dissociação do processo de construção da nação, o qual alimenta, por sua vez, o processo de construção, ou melhor, de reconstrução do estado. A esmagadora maioria dos países africanos possui uma enorme diversidade étnica e linguística, como é evidente, no caso lusófono, na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique. Numa perspectiva global, cada país é um sistema heterogéneo constituído por subsistemas sócio-culturais homogéneos. Cada um destes subsistemas, por seu turno, possui e projecta uma percepção etnocêntrica que os diferencia dos outros e também desse novo elemento intensivamente propagandeado com as independências que é “a nação”. Por outras palavras, se fosse possível realizar uma, digamos, “radiografia étnica” de cada país, teríamos uma visão global do sistema enquanto rede de relações bilaterais e multilaterais entrecruzadas de identidades e alteridades. Do mesmo modo, teríamos indicadores das tendências da integração nacional, nomeadamente dos factores centrípetos e centrífugos. Precisamente por causa do ainda insuficiente conhecimento antropológico da complexidade da realidade social africana, podemos apenas vislumbrar essa radiografia étnica nas designações das identidades e alteridades e na dinâmica decorrente daquilo a que podemos chamar aritmética étnica.

Com efeito, a situação étnica de cada um dos países permite-nos falar de uma aritmética étnica no sentido em que existe uma efectiva relação percentual entre os diferentes grupos etnolinguísticos. Os membros politicamente conscientes destes grupos, por sua vez, não deixam de ver, nas elites governantes, os elementos provenientes do seu seio como seus representantes, ou então não deixam de alimentar um sentimento de défice de representatividade passível de se transformar, em determinadas circunstâncias desfavoráveis, em acções de forte contestação e/ou revolta contra o poder instituído.

Um ambiente onde esse sentimento se torna particularmente sensível e delicado é por regra nas Forças Armadas e a verdade é que em África o poder político depende em grande medida do poder militar. É mesmo possível afirmar que, neste momento, praticamente não existe regime africano, mesmo democrático, que não tenha que contar com a participação dos militares, de modo formal ou informal, nas grandes decisões tomadas no núcleo do poder. Numa visão “tradicionalista” esse papel actual poderá ser visto como uma herança dos “tempos guerreiros”, mas a explicação reside fundamentalmente nas circunstâncias actuais configuradas precisamente pelo presidencialismo e pela concepção patrimonial do poder. Com efeito, é da fragilidade das instituições e do Estado que decorre a força dos militares, que detêm o poder efectivo da manutenção ou alteração da ordem política e constitucional. Ao contrário das actuais democracias ocidentais, as democracias africanas em formação contêm uma composição ambígua do Poder que se revela na intersecção do poder político e do poder militar.

A especificidade do papel dos militares africanos resulta contudo em última análise, desde as independências, de dois factos que obedecem à proposição politológica sublinhada por Adriano Moreira de que “o Poder captura-se e não se larga”: os golpes de Estado militares recorrentes na maioria dos países nas áreas anglófona e francófona; e o acesso ao Poder por intermédio de movimentos armados / militares na área lusófona. Nesta, e com evidência em Angola e Moçambique, observa-se pois a particularidade de a geração no Poder, desde a independência, provir directamente desses movimentos, detendo patentes militares, levando-nos por isso à constatação de que o Poder é na realidade detido por militares “civilizados”, isto é, militares trajando à civil enquanto políticos. O mesmo se verifica nas principais Oposições, as quais, até ao final das respectivas guerra civis, se encontravam armadas e militarizadas.

O poder político em África, geralmente caracterizado pelo presidencialismo, encontra-se pois fortemente sustentado pelo poder militar e, enquanto elemento fundamental da cultura africana, distinta da europeia e ocidental, decorre directamente do princípio hierárquico rígido das estruturas sociais tradicionais que no nível superior concentra no chefe os atributos do poder político e económico. É isto que faz com que em África se criem com facilidade situações de cultos de personalidade, mesmo em Democracia, em que o líder se apresenta como directamente responsável pelo bem do povo, prescindindo frequentemente da intermediação das instituições, usando uma retórica paternalista. Esta imagem e linguagem do pai e da família é de imediato entendida e correspondida pelas audiências e, não raras vezes, esta imagem é também trabalhada no sentido de atribuir ao chefe qualidades mágicas ou religiosas. Isto significa que, no ambiente sócio-cultural africano, o presidente é visto como a principal fonte do bem-estar e da justiça.

É esta a razão pela qual os novos regimes democráticos africanos têm vindo maioritariamente a adoptar o presidencialismo, correspondendo ou não formalmente às disposições constitucionais. Não se pense no entanto que o presidencialismo na África moderna remete para a acção solitária de um homem. O Presidente é na verdade o produto de um grupo que detém o Poder e a sua maior ou menor influência nas decisões desse grupo está directamente relacionada com o seu maior ao menor carisma e real capacidade de exercício do Poder.

A concepção patrimonial do poder está intimamente relacionada com o princípio do presidencialismo. Aos chefes cabe por direito a concentração da riqueza, de acordo com a percepção geral da população, e a formação de clientelas é vista como forma legítima e normal de acesso aos recursos do Estado, os quais são tendencialmente vistos, pela generalidade da “opinião pública”, como recursos pessoais daqueles que detêm o Poder. Daí que após as independências o número de funcionários públicos tenha aumentado de forma extraordinária e que por regra a partir das chefias intermédias as posições sejam complementadas com casa, automóvel, pessoal e subsídios generosos. Nos novos regimes democráticos africanos, aquando das rotações de lugares, observa-se pois a tendência de se gerarem conflitos resultantes da recusa da devolução de tais “benefícios”, entendidos como direitos adquiridos.

Mantendo-nos pois numa perspectiva afro-realista, própria de um ambiente académico e cientificamente objectivo, sem preocupações de exposição politicamente correcta ou adequada, vemos que o contexto da transparência e responsabilização de pessoas e instituições é de facto complexo. A característica singular deste problema do desenvolvimento africano é a seguinte: verifica-se um enquadramento pessoal das instituições, ao invés de um enquadramento institucional das pessoas, como acontece nos chamados países desenvolvidos. É por isso que, porque a diferença é estrutural e de escala, o fenómeno da corrupção na Europa – onde também existe – não pode ser comparado com o fenómeno da corrupção em África, como muitas vezes fazem os africanos como reacção a críticas endereçadas do estrangeiro.

Por exemplo, como foi o caso durante a visita do primeiro-ministro português a Angola no ano passado [2006] e da polémica sobre o assunto que ocorreu nos meios de comunicação social entre alguns portugueses e angolanos. Os portugueses queixavam-se de que a corrupção angolana era um factor dissuasor de negócios, devido não só ao elevado risco mas também à percepção de que, por causa das elites africanas, o mal é endémico e incurável. Para os angolanos, a opinião dos primeiros decorria de uma atitude neo-colonialista, saudosista e mesmo racista, ainda para mais de quem não tinha legitimidade para criticar males alheios, porque os tinha na sua própria casa.

Ambos têm e não têm razão. Os angolanos podem dizer que também existe corrupção em Portugal, mas perdem a razão quando agitam o fantasma colonialista e se recusam a reconhecer a abismal diferença de proporção entre ambas as situações. Não há comparação possível entre o nível da corrupção angolana e o da portuguesa. Essa é a verdade. Mas, por outro lado, os portugueses não têm razão quando pretendem que o mal angolano é incurável. É uma opinião que não toma em conta os esforços que têm vindo a ser desenvolvidos ao mais alto nível, não obstante o passado e os factos consumados, no sentido de minorar o problema. A questão é que ainda vai levar bastante tempo até que a corrupção atinja um nível “aceitável”, correspondendo ao lento mas progressivo fortalecimento das instituições e da pressão da nova geração, mais qualificada, que inevitavelmente substituirá a geração dos menos qualificados.

Porventura basta referir somente este indicador para melhor se compreender a real dimensão do problema em África: actualmente estima-se que 50% das poupanças africanas se encontram no estrangeiro, correspondendo a cerca de 800 mil milhões de dólares. Na Ásia essa percentagem não passa dos 6%.[1]

As acções de capacity e institution building são portanto necessárias nos moldes em que vêm sendo concebidas e desenvolvidas, assim como os avanços legislativos e os melhoramentos no funcionamento da justiça. São, no mínimo, intervenções paliativas. Mas a passagem do enquadramento pessoal das instituições para o enquadramento institucional das pessoas – fenómeno que encerra verdadeiramente a resolução do problema – é uma mudança em tempo demorado que não se coaduna com a pressa das boas intenções dos agentes internacionais do desenvolvimento e dos líderes reformistas africanos.

As Forças Armadas e de Segurança e a Universidade possuem neste contexto um papel decisivo a desempenhar. Desde logo porque são duas instituições fundamentais onde essa mudança de enquadramento se encontra já em curso, cumprindo missões históricas para as quais estão vocacionadas. As Forças Armadas e de Segurança, para além das funções da defesa e da segurança, são depositárias de valores estruturantes como o patriotismo, a unidade nacional, a ordem e a organização, e no seu processo de recrutamento e formação transformam jovens, muitos por vezes sem rumo, em homens responsáveis. A Universidade, porventura uma das maiores invenções da Humanidade, cultiva o conhecimento, a qualificação das pessoas, o mérito do trabalho e a fraternidade, almejando continuamente a melhoria da Sociedade.

Ambas as instituições complementam-se e, em plena função, servem o país, a Nação, como esteios do desenvolvimento. Ora, aceitando a lógica do tempo demorado da mudança sócio-cultural, um país que em África projecte uma aliança estratégica entre as Forças Armadas e de Segurança e a Universidade, dará seguramente um salto qualitativo, bem seguro, no sentido da ética de responsabilidade das elites, sem a qual, precisamente, as instituições não enquadrarão pessoas mas serão enquadradas por pessoas.

Cabe à vontade política e à imaginação dos decisores e planeadores conceberem os parâmetros das alianças estratégicas possíveis, de acordo obviamente com as necessidades específicas de cada caso, proliferando aliás experiências que poderão eventualmente ajudar na construção de modelos; ou então estes serão desenvolvidos localmente. Por exemplo, como estará para acontecer em breve no caso de Angola, a Universidade terá de certificar como licenciaturas as habilitações adquiridas nas academias militares, o que abre um espaço de cooperação neste domínio com perspectivas muito interessantes de mobilidade.

Mas o potencial de cooperação é vasto no âmbito das pós-graduações entre a Universidade e os institutos superiores militares e de segurança. Para além de cursos avançados de especialização, tanto nas ciências sociais como nas tecnológicas, um Curso de Pós-Graduação em Segurança Nacional ou um Mestrado em Estratégia no contexto africano são instrumentos preciosos de selecção e qualificação, e também de articulação CIMIC na produção de projectos de investigação para o desenvolvimento.

Contudo, não há atalhos para a transparência e responsabilização de pessoas e instituições em África. O caminho é longo e geracional. Mas o caminho começa com passos, e faz-se caminhando.


[1] Cfr. Adam Lerrick, Aid to Africa at Risk: Covering Up Corruption, International Economics Report, December 2005, Carnegie Mellon/Gailliot Center for Public Policy (http://www.house.gov/jec/publications/109/12-09-05galliotcorruption.pdf)